terça-feira, 23 de outubro de 2012

A menina sem borda e o garoto palavras. Diário

Me lembro do dia em que espalhei a noticia de que iria voar, todas as outras crianças, que já não tinham tanta vocação para o incrível, riram de mim, você não, você voou comigo. Quando eu contei para os meninos do prédio o medo que eu tinha de entrar na escada, porque no 9º andar, se escondia vez ou outra o Capitão Gancho, os meninos maiores me prenderam no 10º andar, e seguraram a porta. Eu chore
i sem parar, a única forma de sair, seria descer no escuro até o 9º andar e isso eu não poderia. Mas você entrou pelo 9º andar e matou o capitão Gancho e eu pude descer e nunca mais ter medo dele. Eu e você eramos as crianças mais crianças do mundo. Eu te achava lindo, ma por alguma razão não nos apaixonamos, não, esse sentimento era pouco pra gente. Contrariando a tudo, descobrimos que eramos sim almas gêmeas, mas como tudo nosso, almas gêmeas diferentes das do resto do mundo. Você era o de meu melhor ouvinte, eu era sua melhor interlocutora de você. Nenhuma dor durava muito no nosso abraço, eramos o antidoto dos sonhos, nesse mundo de venenos e gravidade. Você era um ano mais velho que eu, então não dividíamos a classe, mas combinamos o seguinte: Sempre que alguma coisa estiver doendo, fora do lugar, ou muito boa que precise urgente de ser contada, nos encontraremos na biblioteca. Combinamos de passar lá duas vezes por dia, para checar se o outro estava por lá, e lá fazíamos nossas confissões e aventuras. No dia que o seu mundo desabou, você me esperou na biblioteca. Mas as nossas escolas agora eram distantes demais para visitas diárias, a sua em um estado, a minha em outro. Você não me ligou para dizer o tamanho do rombo, eu iria correndo te encontrar, mas somos esquisitos demais para usar o telefone. Você me esperou durante uma semana na biblioteca da sua faculdade e eu não cheguei. Eles tiveram que te tirar a força, você não comeu quase nada, você não dormiu, então eles tiveram que e tirar a força, numa camisa de força? Eles queriam, amigo, do jeito meio torto e bruto deles que são os homens da realidade, queriam te dizer poesia, queria dessa forma feia, te fazer aprender a se abraçar sozinho. Eles não entendem nada do tipo de gente que como a gente, vive tão intensamente agora que ás vezes chega atrasado no segundo seguinte. Eles não entendem o fato de que você é bom demais para abandonar os amigos imaginários, esses que carregou durante toda a infância, eles não entendem que você é sensível demais para jogar fora o boneco de lata que construímos juntos. Eu entro em seu quarto e você dorme. Eu te espero. Você acorda e com seus olhos verdes e lindos, olha pra mim com uma tristeza tão aguda que chega a molhar a parte mais sorriso de mim. Você me olhou bravo e pediu para eu ir embora. Eu disse que não podia ir. Você me olhou, atravessando minha alma e disse que não acreditava mais, que eu tinha prometido que ia te ajudar e que eu te esqueci e fui embora. Você me disse que todo mundo foi embora, que a turma não existe mais e que assim como ela, você também não existe, que você também foi embora de você e que nunca, nunca mais vai poder voltar. Você me disse que tudo aquilo que conhecíamos, não existia mais e que seu mundo foi dominado por monstros e inimigos terriveis, que te perseguem e te falam coisas horrendas.Eu chorei e te agradeci pelo dia que você matou o Capitão Gancho pra mim. E pedi desculpas por não ter estado no parquinho no dia que o nosso castelo desmoronou e que eu sentia muito. Você me disse que não sentia mais. Eu pedi desculpas por não ter ido a biblioteca te salvar e perguntei se você me deixava entrar e lutar com você contra esses monstros de vozes terríveis. Você me disse que eu não poderia ouvi-los, nem vê-los, que ninguém mais podia, ou acreditava. Eu disse que eu sim. Você me disse por fim: "Não dá, você está magra demais, velha demais. Eu tenho vergonha. Por favor, sai daqui". E carregando o baldinho e a pázinha eu sai, arrastando-me.

Nenhum comentário:

Postar um comentário